Mesas desarrumadas e letras que voam
Houve numa altura um rapaz. Um doce de miúdo, mais velhinho e muito respeitador. Tinha sempre passado de ano na corda bamba, e apesar de ter genica, e apesar de ser falador, e apesar de se distrair facilmente, nunca nenhum destes sinais foi grande o suficiente para ser considerado motivo de preocupação. A bem dizer, até ao sétimo ano, nunca tinha havido motivo de preocupação de todo. Só agora, chegado ao sétimo, é que a mãe viu que a criança precisava de algum tipo de ajuda.
Quando a mãe chegou até mim, vinha bastante consciente das dificuldades do filho, ainda que não soubesse a origem. Sim, é verdade que por volta da entrada no ensino primário tinham havido alterações drásticas em casa: o pai viu-se obrigado a emigrar, vindo a casa apenas de mês e meio em mês e meio; o irmão nasceu, obrigando o rapaz a dividir o quarto; e o avô mudou-se lá para casa, no sentido de dar algum apoio à mãe. Ao nível da escola primária os problemas existiam, mas nada que chamasse demasiado a atenção: a sua secretária era uma bagunça, estava constantemente a deixar tudo cair e as letras nunca assentavam nas linhas… tudo problemas de rapazes, segundo dizia a professora.
Agora, já crescido, a confusão continuava, deixava tudo em todo o sítio, estar a apanhar material do chão era uma constante, e a sua letra estava cada vez mais confusa com o avançar da escolaridade. As aprendizagens representavam um desafio cada vez maior.
Finalmente, conheci a criança e aí tudo ficou compreendido. Apesar dos seus 13 aninhos, não era capaz de distinguir a esquerda da direita, se lhe pedisse que seguisse um percurso básico perdia-se dentro da própria sala e desorientava-se, mesmo indicar-lhe a casa de banho era difícil… orientava-se nos dias da semana segundo os dias em que tinha basket, e não tinha ideia do que era possível fazer em uma hora. Era uma criança que não se tinha ainda apercebido que vivia num espaço e num tempo, e como tal, nunca se tinha nem organizado, nem estruturado.
E como não?
Numa das principais alturas em que se deveria ter estruturado todo o seu espaço foi alterado: perdeu o seu espaço pessoal no quarto, a sua casa teve de se adaptar a mais uma pessoa e teve de perceber o quão longe era outro país. Mesmo a nível de tempo, enquanto se habituava à estrutura semana, tinha de lidar com o mês e meio que o pai estava fora.
Claro que esta sua desorganização não se tardou a fazer esperar: não era capaz de organizar o seu material e perceber como o dispor na secretária. Com esta dificuldade em se estruturar, era também difícil não mandar o material ao chão, o que era o suficiente para o distrair do que se estava a passar na sala. Mesmo ao nível da folha, era difícil para ele perceber como orientar a sua letra consoante aquelas linhas…
No entanto, como era bem educado, curioso e honestamente interessado, foi avançando, assim como a sua dificuldade.
Foram precisos muitos origamis, muitas construções e muitos percursos, muitos tangrans e muitos puzzles. Muita intencionalidade e muita relação. Mas no último dia houve um sorriso e uma promessa: “um dia, vou brincar com crianças, tal como tu”.
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